Belíssima crônica 'As razões do amor', por Rubem Alves
Belíssima crônica 'As razões do amor', por Rubem Alves
Os
místicos e apaixonados concordam em que o amor não tem razões. Angelus
Silésius, místico medieval, disse que ele é como a rosa: “A rosa não tem ‘porquês’. Ela floresce porque floresce.”
Drummond repetiu a mesma coisa no seu poema “as sem-razões do amor”. É
possível que ele tenha se inspirado nestes versos mesmo sem nunca os ter
lido, pois as coisas do amor circulam com o vento. “Eu te amo porque te amo…” – sem razões… “Não precisas ser amante, e nem sempre saber sê-lo”.
Meu amor independe do que me fazes. Não cresce do que me dás. Se fossem
assim ele flutuaria ao sabor dos teus gestos. Teria razões e
explicações. Se um dia teus gestos de amante me faltassem, ele morreria
como a flor arrancada da terra.
Amor é estado de graça e com amor não se paga.” Nada
mais falso do que o ditado popular que afirma que “amor com amor se
paga”. O amor não é regido pela lógica das trocas comerciais. Nada te
devo. Nada me deves. Como a rosa floresce, eu te amo porque te amo.
“Amor é dado
de graça, é semeado no vento, na cachoeira, no eclipse. Amor foge a
dicionários e a regulamentos vários… Amor não se troca… Porque amor é
amor a nada, feliz e forte em si mesmo…”
Drummond tinha de estar
apaixonado ao escrever estes versos. Só os apaixonados acreditam que o
amor seja assim, tão sem razões. Mas eu, talvez por não estar apaixonado
(o que é uma pena…), suspeito que o coração tenha regulamentos e
dicionários, e Pascal me apoiaria, pois foi ele quem disse que “o coração tem razões que a própria razão desconhece”.
Não é que faltem razões ao coração, mas que suas razões estão escritas
numa língua que desconhecemos. Destas razões escritas em língua estranha
o próprio Drummond tinha conhecimento e se perguntava: “Como
decifrar pictogramas de há 10 mil anos se nem sei decifrar minha
escrita interior? A verdade essencial é o desconhecido que me habita e a
cada amanhecer me dá um soco.” O amor será isto: um soco que o desconhecido me dá?
Ao apaixonado a decifração
desta língua está proibida, pois se ele a entender, o amor se irá. Como
na história de Barba Azul: se a porta proibida for aberta, a felicidade
estará perdida. Foi assim que o paraíso se perdeu: quando o amor –
frágil bolha de sabão -, não contente com sua felicidade inconsciente,
se deixou morder pelo desejo de saber. O amor não sabia que sua
felicidade só pode existir na ignorância das suas razões. Kierkergaard
comentava o absurdo de se pedir dos amantes explicações para o seu amor.
A esta pergunta eles só possuem uma resposta: o silêncio. Mas que se
lhes peça simplesmente falar sobre o seu amor – sem explicar. E eles
falarão por dias, sem parar…
Mas – eu já disse – não estou apaixonado. Olho o amor com olhos de
suspeita, curiosos. Quero decifrar sua língua desconhecida. Procuro, ao
contrário de Drummond, as cem razões do amor…
Vou a Santo Agostinho, em busca de sua sabedoria. Releio as Confissões,
texto de um velho que meditava sobre o amor sem estar apaixonado.
Possivelmente aí se encontre a análise mais penetrante das razões do
amor jamais escritas. E me defronto com a pergunta que nenhum apaixonado
poderia jamais fazer: “Que é que eu amo quando amo o meu Deus?” Imaginem que um apaixonado fizesse essa pergunta à sua amada: “Que é que eu amo quando te amo?” Seria,
talvez, o fim de uma estória de amor. Pois esta pergunta revela um
segredo que nenhum amante pode suportar: que ao amar a amada o amante
está amando uma outra coisa que não é ela. Nas palavras de Hermann
Hesse, “o que amamos é sempre um símbolo”. Daí, conclui ele, a impossibilidade de fixar o seu amor em qualquer coisa sobre a terra.
Variações sobre a impossível pergunta: Te amo, sim, mas não é bem a ti
que eu amo. Amo uma outra coisa misteriosa, que não conheço, mas que me
parece ver aflorar no teu rosto. Eu te amo porque no teu corpo um outro
objeto se revela. Teu corpo é lagoa encantada onde reflexos nadam como
peixes fugidios…Como Narciso, fico diante dele… “No fundo de tua luz marinha nadam meus olhos, à procura…” (Cecília Meireles). Por isto te amo, pelos peixes encantados…
Mas eles são escorregadios, os peixes. Fogem. Escapam. Escondem-se.
Zombam de mim. Deslizam entre meus dedos. Eu te abraço para abraçar o
que me foge. Ao te possuir alegro-me na ilusão de os possuir. Tu és o
lugar onde me encontro com esta outra coisa que, por pura graça, sem
razões, desceu sobre ti, como o Vento desceu sobre a Virgem Bendita.
Mas, por ser graça, sem razões, da mesma forma como desceu poderá de
novo partir. Se isto acontecer deixarei de te amar. E minha busca
recomeçará de novo…
Esta é a dor que nenhum apaixonado suporta. A paixão se recusa a saber
que o rosto da pessoa amada (presente) apenas sugere o obscuro objeto do
desejo (ausente). A pessoa amada é metáfora de uma outra coisa. “O amor começa por uma metáfora”, diz Milan Kundera. “Ou melhor: o amor começa no momento em que uma mulher se inscreve com uma palavra em nossa memória poética.”
Temos agora a chave para compreender as razões do amor: o amor nasce,
vive e morre pelo poder – delicado – da imagem poética que o amante
pensou ver no rosto da amada…
– Rubem Alves, no livro “O retorno e Terno” (Crônicas). 27ª ed., Campinas|SP: Editora Papirus, 2008.
Belíssima crônica 'As razões do amor', por Rubem Alves
Belíssima crônica 'As razões do amor', por Rubem Alves
Os
místicos e apaixonados concordam em que o amor não tem razões. Angelus
Silésius, místico medieval, disse que ele é como a rosa: “A rosa não tem ‘porquês’. Ela floresce porque floresce.”
Drummond repetiu a mesma coisa no seu poema “as sem-razões do amor”. É
possível que ele tenha se inspirado nestes versos mesmo sem nunca os ter
lido, pois as coisas do amor circulam com o vento. “Eu te amo porque te amo…” – sem razões… “Não precisas ser amante, e nem sempre saber sê-lo”.
Meu amor independe do que me fazes. Não cresce do que me dás. Se fossem
assim ele flutuaria ao sabor dos teus gestos. Teria razões e
explicações. Se um dia teus gestos de amante me faltassem, ele morreria
como a flor arrancada da terra.
Amor é estado de graça e com amor não se paga.” Nada
mais falso do que o ditado popular que afirma que “amor com amor se
paga”. O amor não é regido pela lógica das trocas comerciais. Nada te
devo. Nada me deves. Como a rosa floresce, eu te amo porque te amo.
“Amor é dado
de graça, é semeado no vento, na cachoeira, no eclipse. Amor foge a
dicionários e a regulamentos vários… Amor não se troca… Porque amor é
amor a nada, feliz e forte em si mesmo…”
Drummond tinha de estar
apaixonado ao escrever estes versos. Só os apaixonados acreditam que o
amor seja assim, tão sem razões. Mas eu, talvez por não estar apaixonado
(o que é uma pena…), suspeito que o coração tenha regulamentos e
dicionários, e Pascal me apoiaria, pois foi ele quem disse que “o coração tem razões que a própria razão desconhece”.
Não é que faltem razões ao coração, mas que suas razões estão escritas
numa língua que desconhecemos. Destas razões escritas em língua estranha
o próprio Drummond tinha conhecimento e se perguntava: “Como
decifrar pictogramas de há 10 mil anos se nem sei decifrar minha
escrita interior? A verdade essencial é o desconhecido que me habita e a
cada amanhecer me dá um soco.” O amor será isto: um soco que o desconhecido me dá?
Ao apaixonado a decifração
desta língua está proibida, pois se ele a entender, o amor se irá. Como
na história de Barba Azul: se a porta proibida for aberta, a felicidade
estará perdida. Foi assim que o paraíso se perdeu: quando o amor –
frágil bolha de sabão -, não contente com sua felicidade inconsciente,
se deixou morder pelo desejo de saber. O amor não sabia que sua
felicidade só pode existir na ignorância das suas razões. Kierkergaard
comentava o absurdo de se pedir dos amantes explicações para o seu amor.
A esta pergunta eles só possuem uma resposta: o silêncio. Mas que se
lhes peça simplesmente falar sobre o seu amor – sem explicar. E eles
falarão por dias, sem parar…
Mas – eu já disse – não estou apaixonado. Olho o amor com olhos de
suspeita, curiosos. Quero decifrar sua língua desconhecida. Procuro, ao
contrário de Drummond, as cem razões do amor…
Vou a Santo Agostinho, em busca de sua sabedoria. Releio as Confissões,
texto de um velho que meditava sobre o amor sem estar apaixonado.
Possivelmente aí se encontre a análise mais penetrante das razões do
amor jamais escritas. E me defronto com a pergunta que nenhum apaixonado
poderia jamais fazer: “Que é que eu amo quando amo o meu Deus?” Imaginem que um apaixonado fizesse essa pergunta à sua amada: “Que é que eu amo quando te amo?” Seria,
talvez, o fim de uma estória de amor. Pois esta pergunta revela um
segredo que nenhum amante pode suportar: que ao amar a amada o amante
está amando uma outra coisa que não é ela. Nas palavras de Hermann
Hesse, “o que amamos é sempre um símbolo”. Daí, conclui ele, a impossibilidade de fixar o seu amor em qualquer coisa sobre a terra.
Variações sobre a impossível pergunta: Te amo, sim, mas não é bem a ti
que eu amo. Amo uma outra coisa misteriosa, que não conheço, mas que me
parece ver aflorar no teu rosto. Eu te amo porque no teu corpo um outro
objeto se revela. Teu corpo é lagoa encantada onde reflexos nadam como
peixes fugidios…Como Narciso, fico diante dele… “No fundo de tua luz marinha nadam meus olhos, à procura…” (Cecília Meireles). Por isto te amo, pelos peixes encantados…
Mas eles são escorregadios, os peixes. Fogem. Escapam. Escondem-se.
Zombam de mim. Deslizam entre meus dedos. Eu te abraço para abraçar o
que me foge. Ao te possuir alegro-me na ilusão de os possuir. Tu és o
lugar onde me encontro com esta outra coisa que, por pura graça, sem
razões, desceu sobre ti, como o Vento desceu sobre a Virgem Bendita.
Mas, por ser graça, sem razões, da mesma forma como desceu poderá de
novo partir. Se isto acontecer deixarei de te amar. E minha busca
recomeçará de novo…
Esta é a dor que nenhum apaixonado suporta. A paixão se recusa a saber
que o rosto da pessoa amada (presente) apenas sugere o obscuro objeto do
desejo (ausente). A pessoa amada é metáfora de uma outra coisa. “O amor começa por uma metáfora”, diz Milan Kundera. “Ou melhor: o amor começa no momento em que uma mulher se inscreve com uma palavra em nossa memória poética.”
Temos agora a chave para compreender as razões do amor: o amor nasce,
vive e morre pelo poder – delicado – da imagem poética que o amante
pensou ver no rosto da amada…
– Rubem Alves, no livro “O retorno e Terno” (Crônicas). 27ª ed., Campinas|SP: Editora Papirus, 2008.
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